domingo, 22 de abril de 2012

Poeta


Ruminava há anos uma estratégia para se livrar da morte. É que isto de morrer tem que se lhe diga, e o melhor mesmo é fintá-la ao primeiro ensejo. Era com estes pensamentos mágicos que os Poeta, assim lhe chamavam no lugar da Farrapa, enxotava o medo que lhe varria a razão. Em momentos de maior loucura, chegara mesmo a afirmar que esse medo que o acompanhava nas deambulações pela aldeia era o seu cão de caça, que tinha cá um faro, capaz de sentir a quilómetros de distância o odor mortífero das presas que se espatifavam no chão com um tiro certeiro do criador.
Quem não gostava nada de o ouvir com estas conversas, era a gente da terra. Sempre que passava pelos caminhos, entregue a grandes monólogos, tinha que se sujeitar ao assobio das crianças, quando não chegava uma ou outra pedrada mais ousada para lhe calar a boca, e aos desbaratos de um ou outro morador que naquele dia se achava menos pachorrento.
- Já vens, ó excomungado! Que andas por aí a dizer? Olha que o Pai está lá em cima a tomar conta das barbaridades que atiras por essa boca fora.
- Não me tira o sono, está descansado. Não faço contas de me cruzar com ele- e continuava o caminho, agora silenciosamente. Talvez tivesse pena das palavras que cuspira agressivamente para calar a boca daquele atrevido. Talvez sentisse inveja das magras ideias, assentes em pilar nenhum, que edificavam aquele dizer tão simples e tão genuíno. Afinal, tinha a certeza de que para lá do que o que os seus olhos viam era o escuro absoluto, o silêncio gelado do remate da vida. Esta convicção tornava-se indestronável, esta sombra, como um delinquente, perseguia-o.
Entrava num pequeno casebre que o seu pai lhe deixara e, numa ambição descomunal de se tornar eterno, vomitava para o papel tudo o que lhe consumia a alma. Depois, mais aliviado, dizia: « se me levarem o corpo é o de menos».
Só os seus textos poderiam trazer-lhe o tal céu de que a sua gente falava, só a eles confessava a sua dor, o seu ânimo, a esperança de nunca morrer.

Maria da Fonte
carla.santin.blog.uol.com.br

5 comentários:

  1. Se escreves tão bem, nunca hás de morer...

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  2. A vontade de quebrar a barreira do tempo, por vingança ou por medo. Somos corpos efêmeros aprisionando o ser em devir constante. Basta que criemos sempre para transpor tal barreira e cresçamos nessa transitoridade...

    Beijos!

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  3. Dom!

    Porque somente dom permite encantar,


    bjkas

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  4. Para lá do corpo, é a alma que fica. E uma alma de poeta tem sempre algo de belo!

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  5. É com carinho que hoje passo aqui para desejar felicidades à todas as mães de Portugal! Um abraço, Yayá.

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